Em um dia de Agosto

Cinza, escuro. O vento fustiga os rostos mais desprotegidos, além, é claro, de fustigar todo o corpo de igual maneira.
‘Quer comprar um guarda-chuva, amigo? O temporal já vem se armando!’
Limitou-se a ignorar a oferta do vendedor ambulante, que estava preocupado com a vinda do policial na esquina. Olhou a sua volta, ignorando os sons, concentrou-se nas imagens.
Velocidade, preocupação, medo, alegria. A atmosfera já encontrava-se pesada pelo advento natural, e os sentimentos das pessoas ajudavam da sua maneira, contribuindo para o ambiente se tornar sufocante.
Mas não se importou, por um momento pareceu que não precisava mais respirar, ignorou as gotículas gélidas que caiam do céu naquele momento. Ignorou, também, o fato de que elas pareciam cortar a carne naquela tarde fria, pois o vento permanecia imponente. As pessoas que esbarravam nele tinham sentimentos exatamente opostos ao dele, se é que tem como ter sentimentos opostos a nenhum sentimento.
A chuva aumentava a medida que os transeuntes rareavam. Aos poucos a rua ia se tornando vazia, triste. Não mais vendedores, não mais transeuntes. O horizonte se tornou branco sob uma abóbada cinza e agressiva. As gotículas haviam crescido, tornando-se fortes golpes ao chão. Não mais se pode ignorar o barulho, tanto pelo fato de ter se tornado incômodo aos ouvidos, tanto pelo uso da visão ter se tornado difícil.
Decidiu então, fechar os olhos para a triste cena da avenida em sua frente, sendo alvejada por grossas gotas sem pudor ou piedade. Não mais enxergando, sua audição foi aguçada, fazendo com que tivesse a sensação de que podia sentir cada gota ao tocar o chão. Sentiu como se frio asfalto hostil fosse seu corpo. Inclinou a cabeça um pouco para trás, sentia seu rosto sendo cortado por gélidas navalhas, mas não se importou tanto com a laceração de sua carne, mas sim com os sons que ouvia.
Ouvia uma guerra a sua volta, vozes raivosas praguejando para os céus, reclamando de seus calçados molhados, lamentando o dinheiro gasto no salão de beleza, pedindo uma licença hostil para possibilitar a passagem. Pés pesados jogavam água para todos os lados, molhando grossas calçasjeans que passavam tentando manter-se em baixo de uma marquise.
Abriu os olhos, mas não se concentrou na imagem, esqueceu-se de todos sons a sua volta, e em um movimento quase mecânico esticou o braço em tom solene, e abriu a mão em um gesto amigável. Sentia agora o peso, o peso de um mundo inteiro caindo quase que por completo na palma da sua mão. Sentiu que que poderia brincar com aquilo, jogar para cima, praticar malabares. Mas logo o medo invadiu seus pensamentos, como um véu negro cobre o rosto da viúva. Sentiu que se fizesse qualquer coisa, todo o peso cairia de suas mãos e tombaria no chão.
Recolheu seu braço a sua posição original, deu dois passos quase vacilantes em direção a rua, desceu da calçada e ficou parado, em frente à um velho Opala SS. Não percebeu, mas logo no início da rua, um novo convidado vinha chegando. O ônibus balançando já mirava o seu lugar de estacionar em frente a placa quebrada do terminal. O grande veículo vinha como um grande animal feroz correndo atrás de sua presa, não se importando com a chuva que fustigava o seu para-brisa. Desavisado, o homem dá um passo a frente e estagna de repente, e ônibus já se encontrava perto. A sua roda dianteira em um primeiro momento, logo, a roda traseira acertaram a poça mais funda da rua, que se encontrava na frente do homem.
Observou o ônibus seguir seu curso, quando o viu estacionar, olhou para baixo. Viu seu velho sobretudo de gabardine, herança de seu pai, com algumas grandes manchas de barro. Analisou seu jeans escuro e percebeu que também continham rastros do incidente com a poça. Levantou seu rosto e pôde observar, através da chuva mais fraca, que vários transeuntes de encontravam do outro lado da rua, com grandes olhos de espanto olhando fixamente para ele. Sem conseguir absorver as informações a sua volta, sem sua mente conciliar os motivos de tanto espanto, disse para os seus espectadores:
‘É somente chuva.’
As pessoas continuavam a fitá-lo, agora com ar curioso mediante ao seu comentário inesperado e considerado aleatório pelos seus ouvintes. O homem percebeu que as expressões pouco mudaram, percebendo assim, que os seus ouvintes não entendiam os seus sentimentos. Decidiu dizer, por fim:
‘Sejam hostis com a chuva, e ela pintará o céu de escuro e fustigará seus rostos com todo o seu potencial. Aceite-a e ela continuará fustigando seu rosto e as cores do céu não mudarão, mas ela lavará a sua alma e jogará o mundo inteiro em suas mãos para você decidir o que fazer com ele. Exatamente como é a chuva, são as pessoas, e se estou falando isso agora, é porque nenhum de vocês aceita quem está ao seu lado, e fustigam os rostos um dos outros todos os dias, sem perceber.’
O homem baixou sua cabeça, botou as mãos dentro dos bolsos laterais de seu sobretudo encharcado, e subiu a rua 17.

2 coment(s):

Anônimo disse...

Se aceitamos a chuva ela parece se tornar terna. E costumo buscar abrigo na mistura de cores do céu, mas sempre procurando o azul esperança ...

sabes o que eu acho

beijo

~~Gab disse...

Nossa, me apaixonei pelo texto, segui cada linha, cada palavra, e no final conclui que você tem um talento enorme com as palavras. Sério, me apaixonei.

Deixa a chuva cair né, vamos pelo menos esperar o seu azul.
Parabéns, Beijos!

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